segunda-feira, 1 de julho de 2013

Faro - Recordações de um passado longínquo - A actividade funcional da cidade



Faro - Recordações de um passado longínquo (continuação)


e) A actividade funcional da cidade

A população abastecia-se de água tirada de poços públicos que havia distribuídos pela cidade: o poço de S. Pedro, o de S. Sebastião, o do largo do Pé-da Cruz, o do caminho de ferro situado num caminho que corria a leste da casa de recolha das máquinas, e ainda o da Ribeira provido de bombas instaladas, nos primeiros anos séculos, junto da doca e a sul do Repeso do Carvão. Havia ainda noras, situadas no arrabalde, que contribuíam para o abastecimento citadino: a da horta do Peres, no Bom-João e a da horta do Cachola no início da entrada de Ilhão, numa quinta contígua à Vila Pinto. Muitas pessoas abasteciam-se directamente nos poços indicados, mas havia profissionais da distribuição da água – eram os “aguadeiros” que utilizavam para o efeito cântaros metálicos ou de barro transportados em carros apropriados. A água do Peres e a do Cachola era mais cara, nem só pela distância do centro citadino a que estavam esses poços, mas ainda pela fama de boa qualidade que essas águas possuíam. Mais ou menos em 1914 ou 15, um comerciante de iniciativa mandou abrir um poço no sítio do Bom-João cuja água era conduzida por um sistema de canalizações para um centro fornecedor situado junto ao largo do Pé-da Cruz e ainda para outro centro situado junto da doca para fornecimento aos barcos. O comerciante Machado conseguira, assim, dar uma solução quase perfeita  a um problema que se impunha resolver.
Quanto havia incêndios na área da cidade ou no arrabalde, o sino do arco da vila tocava a rebate. A pequena cidade entrava em alvoroço: acorriam muitas pessoas e os aguadeiros lá iam também para abastecer os depósitos das bombas utilizadas pelos bombeiros.
Além de pequenos estabelecimentos de venda de frutas, hortaliças, vinho e, muitas vezes, carvão de madeira, havia junto do Hospital da Misericórdia, um mercado – a “praça da verdura”, no local onde hoje se situa o banco de Portugal; e junto da doca, a SW, erguia-se a “praça do peixe”. O abastecimento da população citadina era ainda feito por vendedores ambulantes que, com os seus pregões anunciadores da mercadoria da mercadoria que traziam, punham uma nota pitoresca no silêncio reinante: eram os vendedores de mariscos, os de frutas, os de hortaliças, os serranos que vendiam mel (“merca meli, oh senhoras!”), os que vendiam louça de barro (“há bô loiça”), os que vendiam óculos e lunetas, os que vendiam tecidos que transportavam às costas, em trouxas (“fino”); pela tarde, pachorrentas, chegavam as vacas leiteiras e, pelo caminho, os camponeses que as conduziam iam vendendo copos de leite ordenhado em plena rua. Outra fonte de abastecimento situava-se nas estalagens da Rua do Peixe-Frito, onde ao princípio da noite chegavam carregamentos de caça, trazida da serra ou do Barrocal e transportada ao dorso de muares.
A vasta zona hortícola que se estende a norte dos morros areníticos que circundam a urbe e por onde em tempos remotos se distribuíam esteiros lagunares era já nos princípios do século o principal foco de abastecimento da praça da verdura. De manhã cedo, filas de pequenos carros de tracção animal e de burros dirigiam-se carregados para o referido mercado. Pelo dia, o silêncio citadino era interrompido pela sineta da praça do peixe que anunciava, para efeitos da lota, a chegada de barcos carregados de pescado.
A cidadezinha de proprietários rurais, de funcionários do Estado ou do Município e de artífices não possuía instalações fabris importantes além da fábrica de moagem perto da estação ferroviária, da de cortiça, instalada no antigo convento da Srª da Assunção, de uma outra também de cortiça na entrada da Srª da Saúde, de uma de conservas de peixe no largo de S. Francisco, junto da muralha e de uma grande estância de madeiras e serração no largo do Carmo. Espalhadas pela cidade, existiam pequenas oficinas artesanais: na rua da Carreira (hoje Infante D. Henrique), que era uma via de acesso e de saída da povoação, a seguir ao grande prédio da Casa de Saúde para doentes sifilíticos, onde actualmente estão instalados parte dos serviços das Caixas de Previdência, havia uma oficina de segueiro, e, já fora do âmbito urbano, à saída para Loulé, havia as citadas oficinas de carros de carga, de ferreiro e a pequena fábrica de cortiça. Da rua Direita havia três oficinas de latoeiro. Para a época a obra de lata desempenhava funções importantes: os baldes para tirar água, as caldeiras para dar de beber ao gado, os cântaros e muitos objectos de cozinha eram de lata ou de folha de zinco.
Havia então um importante comércio de importação e de exportação que se fazia pelo porto.  Em frente do edifício da alfândega e junto da doca acumulava-se, a sul do barracão de Repeso do Carvão, as mercadorias que iam ser embarcadas ou chegavam. Desde os fins do século XVI, com a decadência do porto de Tavira, o movimento portuário farense acentuara-se. Não obstante o movimento de transportes ferroviários, muitas mercadorias continuavam a ser movimentadas por via marítima. No referido local da beira da doca, nos dois primeiros decénios do século, viam-se acumulados montões de molhos de palma e de esparto, e, em certos dias, havia uma actividade desusada: eram os dias de carregamento de alfarrobas, de amêndoas e de figos, frutos que os comerciantes da rua Direita exportavam para as portas do Norte da Europa e até para os Estados Unidos. Grandes embarcações (as “barcas”) construídas no estaleiro existente a norte da doca, junto à linha férrea, conduziam as mercadorias de ou para fora da barra onde ancoravam os cargueiros de longo curso.
A rua Direita era, então, o foco citadino das relações comerciais com a Inglaterra (Liverpool, Hull), com Anvers, Rotterdam, Amesterdan, Hamburgo, Barcelona, Marselha: além do grande escritório de um componente da numerosa colónia judaica situado no rés-do-chão do palácio Bívar e junto da entrada da rua do Peixe-Frito, mais para norte, havia mais seis escritórios de comércio exportador.


***

As actividades funcionais a que nos referimos eram realizadas à custa de um esforço que se dilatava desde cedo até à noite. Não havia horário de trabalho. Os estabelecimentos comerciais estavam abertos até às 23 horas, pelo que os empregados depois do jantar, que nesse tempo era ao meio da tarde, regressavam às suas actividades. Ao Domingo, dia em que muitos camponeses se deslocavam à cidade para se abastecerem, os estabelecimentos estavam abertos na parte da manhã. Nem os empregados de escritório tinham o Domingo como dia completo de descanso, pois admitia-se que poderia chegar qualquer correspondência a que fosse necessário dar resposta imediata.
Com a implantação da República, os governos foram ao encontro das velhas aspirações dos trabalhadores, decretando-se as oito horas de trabalho e o descanso semanal, disposições que, aplicadas nalguns casos imediatamente, em breve foram sendo esquecidas. Só à custa dos movimentos grevistas do proletariado foram, a pouco e pouco, sendo cumpridas. Em 1920 ainda o velho regime de trabalho estava em uso: nesse ano ainda se viam escritórios comerciais abertos ao Domingo, na parte da manhã e mesmo até ao meio da tarde.
A população que assim trabalhava não dispunha dos meios de distracção que hoje há. O cinema só apareceu pela primeira vez em Faro em 1907 ou 1908. Na praça D. Francisco Gomes, foi erguido, junto da doca, um grande barracão, pintado de vermelhão e iluminado a luz eléctrica produzida por dínamo accionado por um pequeno motor de explosão. Este barracão em breve foi substituído, no mesmo local, por outro com melhores condições pintado de azul-claro, mas que também não teve grande duração, pois em 1910 foi demolido  por causa das festas da cidade e da inauguração do monumento a Ferreira de Almeida. Num dos anos seguintes construiu-se, ainda de madeira, um grande cinema – o teatro-circo – em terrenos da horta da Mouraria o edifício de cinema e teatro ainda hoje existente.
No decurso do primeiro quartel do século havia grupos ambulantes de artistas de teatro que levantavam barracas no largo da Lagoa, onde apresentavam os seus espectáculos ora melodramáticos, ora cómicos e, ao ar livre, pela tarde, na praça D. Francisco Gomes exibiam-se, às vezes, grupos de palhaços. Tais grupos de modestos artistas instalavam-se nas pequenas hospedarias e estalagens da rua do Peixe-Frito. Era também aí que se instalavam os homens dos ursos que, percorrendo as ruas da cidade, faziam bailar estes animais ao som de um pandeiro que percutiam ritmicamente. Aí se instalavam os que percorriam as ruas com os realejos, que eram pequenos pianos instalados sobre um carro puxado por um burro.
Num dos primeiros anos a seguir à implantação da República foi inaugurada na cidade a iluminação eléctrica o que permitiu que, à noite, principalmente as ruas de Santo António e D. Francisco Gomes passassem a ter animação desusada, o mesmo sucedendo com o jardim Manuel Bívar que foi dotado com arcos voltaicos. O caminho-de-ferro, primeiro, a seguir a nova iluminação pública que substituiu a que se fazia com candeeiros de petróleo e o desenvolvimento da viação automóvel foram modificando profundamente a vida citadina.
A povoação silenciosa dos primeiros anos do século, e que assim se mantivera desde tempos remotos, foi cedendo o lugar a um centro populacional de trânsito intenso e cheio de ruídos desagradáveis. Era tal o culto que havia pelo silêncio que a Câmara autorizava que se espalhassem raspas de cortiça diante das residências dos doentes para, assim, ser amortecido o ruído dos carros de tracção animal que passavam.
Com a iluminação nova desaparecia o ambiente romântico das noites luarentas, e os ruídos das actividades novas amorteciam as revoadas sonoras dos sinos das igrejas. Ficara assim perdida nas profundezas do tempo histórico a aldeia grande que a cidade fora durante séculos, com as suas hortas, com os pregões dos comerciantes ambulantes e com as suas ruas ermas e silenciosas.


José Neves                                                       
                                                       

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