e) A
actividade funcional da cidade
A população
abastecia-se de água tirada de poços públicos que havia distribuídos pela
cidade: o poço de S. Pedro, o de S. Sebastião, o do largo do Pé-da Cruz, o do
caminho de ferro situado num caminho que corria a leste da casa de recolha das
máquinas, e ainda o da Ribeira provido de bombas instaladas, nos primeiros anos
séculos, junto da doca e a sul do Repeso do Carvão. Havia ainda noras, situadas
no arrabalde, que contribuíam para o abastecimento citadino: a da horta do Peres,
no Bom-João e a da horta do Cachola no início da entrada de Ilhão, numa quinta
contígua à Vila Pinto. Muitas pessoas abasteciam-se directamente nos poços
indicados, mas havia profissionais da distribuição da água – eram os “aguadeiros”
que utilizavam para o efeito cântaros metálicos ou de barro transportados em
carros apropriados. A água do Peres e a do Cachola era mais cara, nem só pela
distância do centro citadino a que estavam esses poços, mas ainda pela fama de
boa qualidade que essas águas possuíam. Mais ou menos em 1914 ou 15, um
comerciante de iniciativa mandou abrir um poço no sítio do Bom-João cuja água
era conduzida por um sistema de canalizações para um centro fornecedor situado
junto ao largo do Pé-da Cruz e ainda para outro centro situado junto da doca
para fornecimento aos barcos. O comerciante Machado conseguira, assim, dar uma
solução quase perfeita a um problema que
se impunha resolver.
Quanto havia
incêndios na área da cidade ou no arrabalde, o sino do arco da vila tocava a
rebate. A pequena cidade entrava em alvoroço: acorriam muitas pessoas e os
aguadeiros lá iam também para abastecer os depósitos das bombas utilizadas
pelos bombeiros.
Além de
pequenos estabelecimentos de venda de frutas, hortaliças, vinho e, muitas
vezes, carvão de madeira, havia junto do Hospital da Misericórdia, um mercado –
a “praça da verdura”, no local onde hoje se situa o banco de Portugal; e junto
da doca, a SW, erguia-se a “praça do peixe”. O abastecimento da população
citadina era ainda feito por vendedores ambulantes que, com os seus pregões
anunciadores da mercadoria da mercadoria que traziam, punham uma nota pitoresca
no silêncio reinante: eram os vendedores de mariscos, os de frutas, os de
hortaliças, os serranos que vendiam mel (“merca meli, oh senhoras!”), os que
vendiam louça de barro (“há bô loiça”), os que vendiam óculos e lunetas, os que
vendiam tecidos que transportavam às costas, em trouxas (“fino”); pela tarde,
pachorrentas, chegavam as vacas leiteiras e, pelo caminho, os camponeses que as
conduziam iam vendendo copos de leite ordenhado em plena rua. Outra fonte de
abastecimento situava-se nas estalagens da Rua do Peixe-Frito, onde ao princípio
da noite chegavam carregamentos de caça, trazida da serra ou do Barrocal e
transportada ao dorso de muares.
A vasta zona
hortícola que se estende a norte dos morros areníticos que circundam a urbe e
por onde em tempos remotos se distribuíam esteiros lagunares era já nos
princípios do século o principal foco de abastecimento da praça da verdura. De
manhã cedo, filas de pequenos carros de tracção animal e de burros dirigiam-se
carregados para o referido mercado. Pelo dia, o silêncio citadino era
interrompido pela sineta da praça do peixe que anunciava, para efeitos da lota,
a chegada de barcos carregados de pescado.
A cidadezinha
de proprietários rurais, de funcionários do Estado ou do Município e de
artífices não possuía instalações fabris importantes além da fábrica de moagem
perto da estação ferroviária, da de cortiça, instalada no antigo convento da
Srª da Assunção, de uma outra também de cortiça na entrada da Srª da Saúde, de
uma de conservas de peixe no largo de S. Francisco, junto da muralha e de uma
grande estância de madeiras e serração no largo do Carmo. Espalhadas pela
cidade, existiam pequenas oficinas artesanais: na rua da Carreira (hoje Infante
D. Henrique), que era uma via de acesso e de saída da povoação, a seguir ao
grande prédio da Casa de Saúde para doentes sifilíticos, onde actualmente estão
instalados parte dos serviços das Caixas de Previdência, havia uma oficina de
segueiro, e, já fora do âmbito urbano, à saída para Loulé, havia as citadas
oficinas de carros de carga, de ferreiro e a pequena fábrica de cortiça. Da rua
Direita havia três oficinas de latoeiro. Para a época a obra de lata
desempenhava funções importantes: os baldes para tirar água, as caldeiras para
dar de beber ao gado, os cântaros e muitos objectos de cozinha eram de lata ou
de folha de zinco.
Havia então
um importante comércio de importação e de exportação que se fazia pelo porto. Em frente do edifício da alfândega e junto da
doca acumulava-se, a sul do barracão de Repeso do Carvão, as mercadorias que
iam ser embarcadas ou chegavam. Desde os fins do século XVI, com a decadência
do porto de Tavira, o movimento portuário farense acentuara-se. Não obstante o
movimento de transportes ferroviários, muitas mercadorias continuavam a ser
movimentadas por via marítima. No referido local da beira da doca, nos dois
primeiros decénios do século, viam-se acumulados montões de molhos de palma e
de esparto, e, em certos dias, havia uma actividade desusada: eram os dias de
carregamento de alfarrobas, de amêndoas e de figos, frutos que os comerciantes
da rua Direita exportavam para as portas do Norte da Europa e até para os
Estados Unidos. Grandes embarcações (as “barcas”) construídas no estaleiro
existente a norte da doca, junto à linha férrea, conduziam as mercadorias de ou
para fora da barra onde ancoravam os cargueiros de longo curso.
A rua Direita
era, então, o foco citadino das relações comerciais com a Inglaterra
(Liverpool, Hull), com Anvers, Rotterdam, Amesterdan, Hamburgo, Barcelona,
Marselha: além do grande escritório de um componente da numerosa colónia
judaica situado no rés-do-chão do palácio Bívar e junto da entrada da rua do
Peixe-Frito, mais para norte, havia mais seis escritórios de comércio
exportador.
***
As
actividades funcionais a que nos referimos eram realizadas à custa de um
esforço que se dilatava desde cedo até à noite. Não havia horário de trabalho.
Os estabelecimentos comerciais estavam abertos até às 23 horas, pelo que os
empregados depois do jantar, que nesse tempo era ao meio da tarde, regressavam
às suas actividades. Ao Domingo, dia em que muitos camponeses se deslocavam à
cidade para se abastecerem, os estabelecimentos estavam abertos na parte da
manhã. Nem os empregados de escritório tinham o Domingo como dia completo de
descanso, pois admitia-se que poderia chegar qualquer correspondência a que
fosse necessário dar resposta imediata.
Com a
implantação da República, os governos foram ao encontro das velhas aspirações
dos trabalhadores, decretando-se as oito horas de trabalho e o descanso
semanal, disposições que, aplicadas nalguns casos imediatamente, em breve foram
sendo esquecidas. Só à custa dos movimentos grevistas do proletariado foram, a
pouco e pouco, sendo cumpridas. Em 1920 ainda o velho regime de trabalho estava
em uso: nesse ano ainda se viam escritórios comerciais abertos ao Domingo, na
parte da manhã e mesmo até ao meio da tarde.
A população
que assim trabalhava não dispunha dos meios de distracção que hoje há. O cinema
só apareceu pela primeira vez em Faro em 1907 ou 1908. Na praça D. Francisco Gomes,
foi erguido, junto da doca, um grande barracão, pintado de vermelhão e
iluminado a luz eléctrica produzida por dínamo accionado por um pequeno motor
de explosão. Este barracão em breve foi substituído, no mesmo local, por outro
com melhores condições pintado de azul-claro, mas que também não teve grande
duração, pois em 1910 foi demolido por
causa das festas da cidade e da inauguração do monumento a Ferreira de Almeida.
Num dos anos seguintes construiu-se, ainda de madeira, um grande cinema – o teatro-circo
– em terrenos da horta da Mouraria o edifício de cinema e teatro ainda hoje
existente.
No decurso do
primeiro quartel do século havia grupos ambulantes de artistas de teatro que
levantavam barracas no largo da Lagoa, onde apresentavam os seus espectáculos
ora melodramáticos, ora cómicos e, ao ar livre, pela tarde, na praça D.
Francisco Gomes exibiam-se, às vezes, grupos de palhaços. Tais grupos de
modestos artistas instalavam-se nas pequenas hospedarias e estalagens da rua do
Peixe-Frito. Era também aí que se instalavam os homens dos ursos que,
percorrendo as ruas da cidade, faziam bailar estes animais ao som de um pandeiro
que percutiam ritmicamente. Aí se instalavam os que percorriam as ruas com os
realejos, que eram pequenos pianos instalados sobre um carro puxado por um
burro.
Num dos
primeiros anos a seguir à implantação da República foi inaugurada na cidade a
iluminação eléctrica o que permitiu que, à noite, principalmente as ruas de
Santo António e D. Francisco Gomes passassem a ter animação desusada, o mesmo
sucedendo com o jardim Manuel Bívar que foi dotado com arcos voltaicos. O caminho-de-ferro,
primeiro, a seguir a nova iluminação pública que substituiu a que se fazia com
candeeiros de petróleo e o desenvolvimento da viação automóvel foram
modificando profundamente a vida citadina.
A povoação silenciosa
dos primeiros anos do século, e que assim se mantivera desde tempos remotos, foi
cedendo o lugar a um centro populacional de trânsito intenso e cheio de ruídos
desagradáveis. Era tal o culto que havia pelo silêncio que a Câmara autorizava
que se espalhassem raspas de cortiça diante das residências dos doentes para,
assim, ser amortecido o ruído dos carros de tracção animal que passavam.
Com a
iluminação nova desaparecia o ambiente romântico das noites luarentas, e os
ruídos das actividades novas amorteciam as revoadas sonoras dos sinos das
igrejas. Ficara assim perdida nas profundezas do tempo histórico a aldeia
grande que a cidade fora durante séculos, com as suas hortas, com os pregões
dos comerciantes ambulantes e com as suas ruas ermas e silenciosas.
José Neves
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