Biografia de José de Jesus Neves Júnior
1 - Origens familiares
Chamava-se
Maria da Piedade, a mãe. Nascida em Loulé, fora criança abandonada, órfã de pai
e mãe.
José de Jesus Neves, o pai. Natural de terras
a sudoeste do Algoz, filho de um moleiro cuja morte prematura leva os filhos a
procurarem modo de vida noutras partes. Fixa-se então em Faro. Aí casa com
Maria da Piedade e emprega-se na Casa dos Condes do Cabo de Santa Maria. Pouco
tempo depois passa a trabalhar no armazém de cereais de Joaquim Miguel. Para
aumentar os fracos recursos familiares fazia pequenos negócios.
A mãe
assegura as tarefas domésticas e cuida do pequeno José e mais tarde das suas
irmãs, Maria de Jesus e Felisbela.
Em 1920 o pai estabelece mercearia no largo de
S. Pedro. No Verão de 1928 trespassa a mercearia, em crescentes dificuldades
devido à forte inflação. Passa a viver de pequenos negócios nos poucos meses
que o separam de uma morte inesperada. Maria da Piedade fora já levada pela
doença anos antes.
2 - Estudos e leituras e primeiros anos de
docência (1908-1930)
Desde cedo se
revelou José Neves um aluno aplicado fazendo o exame do 1º grau com distinção
(exame feito após o terminus da 3ª classe) e obtendo no ano seguinte aprovação
no exame da 4ª classe. Os bons resultados escolares e uma certa debilidade
física, levaram o pai a matriculá-lo no Liceu, contrariamente ao que era
habitual nas famílias de fracos recursos.
À medida que
avança nos estudos, vai despertando para a leitura. Já em plena adolescência,
por volta dos 14 anos, começa a leitura dos romances de Júlio Verne e de Vitor
Hugo passando depois a Alexandre Herculano Lamartine e Tolstoi. Já pelos 17
anos é a vez de Júlio Dantas, Guerra Junqueiro, Eça de Queiroz, Almeida
Garrett, Rousseau, Norman Angell, A. Hamon, Júlio Dinis, Rebelo da Silva. A
leitura de “A Velhice do Padre Eterno” de Guerra Junqueiro, começa a gerar no
jovem um sentimento anti-clerical que se vai depois estruturando. Afasta-se
assim das crenças que enquadraram a sua infância. Com o tempo, vai-se afastando
também da audição da música religiosa que o atraía à Igreja.
Ainda por
esta época inicia as leituras sobre questões sociais e doutrinárias. Revela
também um crescente interesse pela Filosofia, suscitado pelo estudo da
disciplina no 6º ano do Liceu.
Terminado o
6º ano, o jovem José interrompe os estudos começando a trabalhar no escritório
comercial de Francisco Mateus Júnior, exportador de frutos secos do Algarve.
Era o ano de 1918. Outubro. Tempos difíceis em que a subida do custo de vida levou
a que os pais de José deixassem de conseguir sustentá-lo no liceu. Por outro
lado, o pai via no escritório comercial um bom futuro para o filho.
José não
desiste porém de prosseguir os estudos. As leituras continuam com afinco
incidindo agora sobre assuntos histórico-sociais. Inicia por esta época a
leitura de jornais de carácter doutrinário como “A Aurora”, periódico
anarquista e “A monarquia”. As preocupações filosóficas persistem. Em 1919 lê
“Não creio em Deus” de Timotheon, o “Tratado de Filosofia Positiva” de Comte e
a “Crítica da Razão Pura” de Kant. Lê também as obras de Leonardo Coimbra e
clássicos como “Quo Vadis” e “A Origem das Espécies” de Darwin.
Até esta época
as obras de doutrinação sociológica englobavam-se no socialismo pré-marxista.
Só mais tarde iniciará o contacto com o materialismo dialéctico.
No Verão de
1919, José Neves participa na criação do Centro para a Propaganda das Doutrinas
Socialistas juntamente com Neves Anacleto, Mário Celorico Drago, Duarte Infante
e um rapaz mais velho, espanhol, de nome Sanchez. Este grupo reunia-se na Sede
dos Sindicatos Operários. Aqui se discutiam temas de carácter político e
social. José Neves defendia ideias que tinham por fundamento essencial, a
dignificação da pessoa humana e a defesa do exercício da liberdade numa
sociedade de estrutura socialista.
O receio pela
disseminação das ideias socialistas provocado pela Revolução Soviética de 1917,
levará o Governo Civil de Faro a ordenar o encarceramento dos jovens. José Neves
passa então 13 dias na prisão.
No Outono de
1919, José Neves inicia a sua preparação para a conclusão do ensino liceal.
Para além dos estudos que realiza de forma autónoma, tem aulas particulares de
latim com o cónego Bentes. Em Julho de 1920 é aprovado no exame do 7º ano de
Letras completando assim o curso liceal. Permanecerá ainda um ano em Faro a
trabalhar no escritório comercial, de modo a reunir recursos financeiros
suficientes para estudar em Lisboa, na Faculdade de Letras. Tal sucederá no dia
8 de Outubro de 1921. Antes porém um golpe doloroso, a morte de sua mãe no dia
2 de Outubro, vítima de cancro.
Em 1922/23
interrompe novamente os estudos, de forma a preparar-se financeiramente para a
sua subsistência em Lisboa. Esta preparação é feita através de explicações,
para as quais fizera sólida preparação, sobretudo a nível da Matemática que
José Neves designa de “a minha grande enxada”.
No que
respeita ao ensino ministrado na Faculdade de Letras, é um crítico e o
sentimento que o domina é de desilusão. Considera que é um ensino mais liceal
do que universitário, com um cunho literário e onde faltam muitas vezes dados
científicos concretos. Por outro lado, nas aulas é rara a discussão de temas em
que se atenue o fosso que separa professor e alunos.
Para além das
aulas na faculdade, José Neves tinha de dar lições para o seu sustento. Daí que
a sua vida de estudante fosse muito ocupada, com aulas, lições e muitas caminhadas
pelas ruas de Lisboa, para se deslocar de um lado para o outro. O tempo para
estar calmamente a estudar na biblioteca não existia.
O regresso
aos estudos na Faculdade de Letras faz-se no ano lectivo seguinte (1923/24) não
havendo a partir daí mais interrupções.
Em finais de
Dezembro de 1923 ou já em Janeiro de 1924, José Neves começa a frequentar a
casa de Teófilo Braga ajudando o mestre quase cego a redigir os seus trabalhos.
O velho professor, grande admirador de Spinoza e Beethoven, constituiu uma
referência para o jovem estudante.
Já no ano de
1925 houve um acontecimento que veio perturbar o ano lectivo que tinha acabado
de começar: a Faculdade de Letras aderiu ao movimento grevista iniciado pelos
estudantes do Técnico. Faziam-se várias reivindicações que se relacionavam com
os concursos para professores. José Neves adere e dedica-se afincadamente ao
movimento tornando-se mesmo presidente da Comissão dos Grevistas. Muito mais
tarde, acaba por considerar que os estudantes haviam sido orquestrados pelas
forças políticas de direita que pretendiam criar instabilidade e perturbar
assim o regime republicano. Aproximava-se a passos largos o 28 de Maio de 1926.
No Outono de
1926 José Neves prepara a sua tese de licenciatura - “A questão social no
século XIX” . Em 27 de Janeiro de 1927 faz o seu exame de licenciatura
juntamente com os colegas Dias Valente e Agostinho da Silva obtendo a
classificação de 15 valores. Segue-se em Maio de 1927 o exame de admissão à
Escola Normal Superior. Enquanto frequenta as aulas na Escola Normal Superior,
é colocado por dois meses no liceu Passos Manuel, em substituição de um
professor. É neste curto período que é professor de Orlando Ribeiro (viria a
ser um geógrafo de renome internacional) e Evaristo Vieira (tornar-se-ia ilustre
professor, metodólogo da Geografia). Entre Janeiro e Junho de 1928 faz estágio
no liceu Camões. Completava-se assim esta longa fase de formação.
Em 1928-29
consegue colocação no Liceu de Faro. Em Setembro de 1930 José Neves casa com
Maria Francisca Lourenço Mendonça partindo em Outubro para o Funchal, cidade
onde é colocado como professor efectivo.
3 - O
tempo do Funchal (1930-1938)
No Funchal José
Neves lecciona no Liceu Jaime Moniz onde se passa a relacionar com um grupo de
colegas, entre os quais se contavam Martins Afonso e Sant’Anna Dionísio. Eram
habituais as discussões de carácter político e doutrinário neste grupo, sendo
que José Neves defendia então um esquerdismo acentuado, convencido que na
Rússia se implantara um comunismo libertário e humano (não muito depois esta
ideia começar-se-ia a desvanecer). Sant’Anna batia-se antes pela democracia
seareira.
Reunia-se
também em amenas conversas com ex-alunos ou alunas do Liceu do Funchal. Ou
simplesmente contemplava longamente o mar.
Empenhado no
aprofundamento dos seus estudos, José Neves continuava as suas leituras e
reflexões nos fins-de-semana, nas férias ou quando o trabalho docente era mais
leve. Prosseguia os estudos e a meditação sobre as teses de Osvaldo Spengler e
Marx que vinham já dos tempos da Faculdade. Estas reflexões levaram-no à
interpretação da curva evolutiva da civilização romana e, particularmente a
fase de transição para a Idade Média.
Por
iniciativa de Sant’Anna Dionísio, resolveram promover um ciclo de conferências
públicas sobre temas histórico-filosóficos. Era a concretização de uma ideia
que vinha dos tempos da República e que passava por difundir a cultura entre as
massas populares, condição que consideravam essencial para a democracia.
Os textos
tinham de passar pelo Governo Civil pelo que decidiu José Neves não sujeitar o
texto que tinha preparado, à apreciação do representante do governo distrital.
Temia a sua não aprovação, dado o carácter doutrinário do texto que versava
sobre o desenvolvimento histórico de Roma. Mais tarde Sant'Anna Dionísio
solicitou a parte sociológica do texto, para publicação na Seara Nova. No
entanto, possíveis divergências com António Sérgio, devido à tonalidade
marxista do artigo, levaram à sua não publicação.
No liceu
Jaime Moniz a camaradagem era aliciante e centrava-se na pessoa de João Augusto
de Freitas que fora senador nos tempos da 1ª República. O entusiasmo de José
Neves centrava-se agora no combate ao sistema político vigente.
Foi no Liceu
Jaime Moniz que José Neves apresentou as conferências “A intencionalidade do
descobrimento do Brasil” e “ A significação histórica da acção colonial
portuguesa”, nos anos de 1932 e 1933, respectivamente. Estas conferências
seriam depois publicadas no Diário de Notícias do Funchal. Foi ainda neste
tempo do Funchal que desenvolveu um estudo que intitulou “Aspectos económicos e
sociais da Idade Média Portuguesa”, publicado na revista Labor em 1957.
O gosto pela
música levou-o também a promover concertos, como o que se realizou no teatro
Arriaga e teve como executantes os colegas João Neves e Marques da Rocha. No programa
o inevitável Beethoven que José Neves tanto admirava.
Aquando da Guerra Civil Espanhola José Neves,
sempre muito ligado às questões político sociais, estabelece ligações com o
Socorro Vermelho. Numa das suas muitas travessias marítimas para o Continente,
tem a incumbência de transportar certa quantia em dinheiro. Acaba por não fazer
a entrega em mãos como estava previsto optando por um intermediário. Apesar de
todas as cautelas teme, durante algum tempo, a chegada dos “esbirros”.
Em Julho de
1938, José Neves e a família regressam ao continente. No cais estiveram
rodeados de amigos que se vieram despedir. Era o fim do tempo do Funchal.
4 - O tempo de Évora (1938-1945)
No tempo de
Évora novo círculo de amizades se forma. No café Camões reunia-se com os
colegas Miranda e Ramalho Franco. Muitas vezes saíam para o campo pela estrada
de Arraiolos e davam passeios pelos extensos montados e olivais.
As leituras
continuavam sempre. Por esta época a obra poética de Eugénio de Castro.
A nível do
trabalho docente surgem novas responsabilidades quando é nomeado vice-reitor do
Liceu. E as responsabilidades crescem quando o reitor, o Dr. Bartolomeu
Gromicho, veio a ser nomeado (“ou antes
pseudo-eleito”) para a Assembleia Nacional. Assim, enquanto esta funcionava,
José Neves tinha de se ocupar de todos os problemas do Liceu: o Conselho
Administrativo, os problemas das aulas e dos professores e as festas escolares.
Uma das
funções do reitor era a visita a aulas, por forma a fiscalizar o trabalho dos
docentes. Por considerar que esta fiscalização era feita por um processo que
considerava deprimente e prejudicial ao desenvolvimento da docência, nunca
desempenhou tal missão. Em relação à organização das festas escolares,
coube-lhe a organização das comemorações do 1º de Dezembro. Certa ocasião, por
desconhecer as normas protocolares, não colocou ninguém a receber os
convidados, facto que levou certo comandante da Guarda Republicana a fazer uma
reclamação. José Neves teve de apresentar as suas explicações e desculpas [nas suas
notas acrescenta: “ Este oficial fora um
dos que, na fronteira, repelia para a morte certa, os fugitivos da guerra civil
espanhola.”].
Outro acontecimento
que deixou registado respeita a um desacato cometido pelos alunos que lhe deu
grandes trabalhos e preocupações:
“ Numa manhã de Domingo, o Demétrio, chefe do
pessoal menor, foi chamar-me para ver o que nessa noite se passara nos campos
de recreio do Liceu. Tinham partido vasos de flores e destruído uns hortejos
que os empregados tinham junto da muralha fernandina. Perante o barulho, a
algazarra, o empregado de limpeza levantou-se e vira por um buraco aberto na
parede quem estava na prática da destruição. Eu sabia, portanto, os nomes. De
harmonia com a tradição do Liceu, mas com benevolência, resolvi que fossem
aplicados 3 dias de suspensão a cada um e que pagassem os estragos. Mas quis
que fossem eles a confessar o delito. Chamei os pais. Deram a palavra de honra
que seus filhos não estiveram. Pedi ao moço que chefiava a Mocidade Portuguesa
para conseguir que me fossem dizer até tal dia e hora. Não foram. Chamei-os à
Reitoria, os alunos internos e os externos envolvidos na proeza. Deram a
palavra de honra que não tinham sido. Dias depois chega mestre Gromicho a quem
narrei os factos. Respondeu-me: ‘Vai ver como confessam!’. Perante mim e ele
sentados à secretária compareceu a fila de moços. Continuaram a dar a palavra
de honra. Então Gromicho, irritado, levanta-se, avança para eles dizendo: ‘Palavras
de honra de merda!’ E, perante o mal
cheiroso vocábulo, confessaram. Fiquei com uma sensação de asco pela humanidade.”
Outro ainda
refere-se aos problemas que resultaram de um beijo: “Durante os ensaios preparatórios de uma festa escolar, houve um moço
que beijou uma companheira de ensaio. Viram. Os professores da moral, os
sacerdotes, ficaram escandalizados e trabalharam para que a moça fosse
castigada. Opus-me tenazmente a tal injustiça que queriam fazer cair sobre a
menina.”
Nesta altura
começa também a ser convidado para fazer pontos de exame e para integrar o júri
dos Exames de Estado.
Apesar de
ocupar cargos e tarefas de relevo durante a vigência do Estado Novo, havia quem
o soubesse desafecto ao regime, embora não conseguissem provas. Sobre isto,
José Neves deixa a seguinte memória: “Eu
expunha os temas docentes em História pairando sempre num plano superior a
qualquer tendência política, embora com a preocupação de dinamizar consciências
sem apontar determinado caminho ideológico. Talvez por esse vago rumor, como a
rapaziada da Mocidade Portuguesa não se tivesse apresentado fardada em
determinada festa escolar, o delegado provincial enviou-me um ofício pedindo
explicações. Vi o caso mal parado e escrevi ao Dr. Gromicho para a Assembleia
Nacional. Este respondeu-me prometendo-me todo o apoio de deputado. Respondi ao
ofício e o homem mais nada fez. Se não estou em erro, foi por essa ocasião que
os rapazes destruíram na sala respectiva os emblemas da Mocidade Portuguesa. Os
rapazes sabiam que eu não era afecto ao regime salazarista. E tanto isso era
assim que, anos mais tarde, estando eu já em Faro, apareceu-me à noite em casa
o antigo aluno Mário Ruivo para conversar com o seu velho professor. Durante a
conversa disse-me que ele e outros tinham conseguido virar ideologicamente o
Lima de Freitas. O actual grande pintor, como aluno aplicado, cumpria
simplesmente os regulamentos da Mocidade Portuguesa. Serviam-se dele para
desenhar os cartazes. Muitas vezes aparecia-me na reitoria com esses admiráveis
desenhos. Estava-se pois em presença do admirável desenhador que é.”
5 - Faro (1945-1982)
Tendo
concorrido a uma vaga no Liceu de Faro consegue a desejada colocação. Verão de
1945. Novo recomeço. Regresso também ao fim de tantos anos à terra natal.
Aluga casa
perto do Liceu, na Quinta do Cachola, pertencente nesses idos de 1945 a António
de Sousa Ramos. Havia um imenso campo de amendoeiras a toda a volta da casa, o
mesmo campo de amendoeiras que conhecia da sua juventude. Instala-se a família.
Nessa casa viveria longos anos, até 1974.
É um regresso
ao velho burgo que percorre em reconhecimento, a avaliar as mudanças, o
crescimento. Regresso também ao velho Liceu próximo da Alameda que frequentara
como aluno e onde leccionara em 1928/29.
É, por outro
lado, o recomeço da actividade cultural. O Círculo Cultural do Algarve será
espaço de convívio e participação. É convidado então a participar nas
actividades da Universidade Popular, pelos orientadores desta associação
cultural, que eram os colegas Aleixo da Cunha e Joaquim Magalhães. Nestas
sessões repete algumas temáticas já apresentadas noutros locais e prepara novos
temas, nomeadamente a lição sobre “Ciência Náutica na Época dos Descobrimentos”
e as lições sobre a geração de 1870. Mais tarde, em 1949 apresenta outra
conferência a propósito das festas centenárias de Faro. O trabalho – “O
condicionalismo histórico da formação de Portugal” – foi posteriormente publicado na Revista
Labor.
Novo círculo
de amizades foi-se também delineando. Nos finais dos anos quarenta ou
princípios dos de cinquenta, começa a conviver com Emiliano da Costa,
estabelecendo-se entre ambos bons laços de amizade. Do grupo de amigos que
rodeavam o poeta faziam parte, além de José Neves, Joaquim Magalhães, Aleixo da
Cunha, Arnaldo Vilhena, Gaspar da Costa, Marques da Silva e António Ramos Rosa.
Também o poeta Cândido Guerreiro integra o seu círculo de amizades. Será
este poeta objecto dos seus estudos e palestras. Agradáveis foram também as
reuniões em casa do Dr. Arnaldo Vilhena onde um grupo se reunia para audições
de música. Certa ocasião, após jantar de confraternização, José Neves propõe a
audição de alguns trechos musicais: “Seria
apenas a “appassionata”, essa meditação sobre a existência, e a Nona sinfonia,
obra do génio que foi um Cristo de todas as dores humanas. Assim se fez!
A “Appassionata” é uma síntese da luta
titânica contra o Destino. Levantei-me de junto dos amigos e fui, só, para a
pequena sala que servia de caixa de ressonância do aparelho. Queria sentir
dentro de mim próprio as marteladas furiosas do Titan sobre o Mundo… Senti-me
bem!
Depois veio o 1º andamento da Nona. Uma
“sombra” estava sentada ao meu lado, mas eu não sofria. E pude contemplar a
beleza – que cada vez melhor compreendo – da catedral sonora, cujo pensamento
andou tantos anos na mente do génio. Vivi o drama do Homem expresso nesse
primeiro andamento. Qual é o caminho? É por aqui? Sim! Homens, demos as mãos,
abracemos e caminhemos para a luz! E o “andante” sublime ia-se desenvolvendo.
Há hesitações. Mas uma voz grita: avante! Ei-la a verdade! Ela lá está!
Hinos sublimes ecoam na catedral e o
pensamento do Mestre irrompe bruscamente entoado agora pela voz humana:
Freude…Freude… Alle Munschen Werden Bruder.
Um músico que estava no grupo anunciou uma
surpresa: - Vão ouvir! E uma suplica profunda, que parecia levantar-se da noite
de todos os tempos, entoada por instrumentos de corda, ecoou na sala como um
soluço. Senti que as mãos do génio se me haviam apoderado da alma para a elevar
à Luz do Infinito, lá onde não se sente a Dor e de onde eu até podia contemplar
a Sombra magoada que estava a meu lado, como um espectro, mas liberto … E o meu
espírito chorava … De dor? De alegria? Quase todos se levantaram. Eram médicos
e professores. Os mais novos andavam pelos 45 ou 46 anos e os dois mais velhos,
um tem 53 anos e outro 70 anos. O drama de cada um estava presente! E foi
preciso apagar a iluminação. Só se ouvia o Canto do Mestre: o último cântico, o
quarteto op. 135, cujo 3º andamento é o seu mais extraordinário “adágio”:
lágrimas que caem sobre a vida e um olhar que se eleva para o alto.”
Nestes anos
50 José Neves passou a ser chamado com frequência para serviços do Ministério:
apreciação dos livros escolares, exames de admissão ao estágio pedagógico e
exames de Estado. Esta actividade continuará sem interrupções até ao final da
sua carreira. Na verdade, como deixou registado, Ministério reconhecia-o como
pessoa zelosa e sabedora – “Nos anos 50
chegara ao Ministério o conhecimento de que eu ministrava o ensino com zelo e
que era pessoa sabedora.”
No final dos
anos 50 e princípios dos anos 60, José Neves realizou vários passeios ao norte
de Portugal, nos quais aproveitou para fazer as suas observações geográficas,
acompanhado de cartas topográficas das regiões visitadas. Foi com base nestas
observações que desenvolveu os textos que foram posteriormente publicados na
obra “Guia de Portugal – Alto Minho”, embora estes tivessem sido reduzidos e
tivessem saído com “gralhas aborrecidas”.
Esta obra era orientada à época por Sant’Anna Dionísio que havia sido colega de
José Neves no Liceu do Funchal e com o qual mantinha uma fraterna amizade.
Mais tarde,
já para finais dos anos 60, José Neves colabora no Dicionário de História de
Portugal de Joel Serrão, com um artigo sobre Alberto Sampaio. Joel Serrão havia
sido seu aluno no Liceu do Funchal. Mantêm correspondência assídua entre 1939 e
1946 e depois de forma esparsa. Em 1946, Joel Serrão dedica ao seu professor a
1ª edição da obra “O carácter social da revolução de 1383” em caderno da Seara
Nova, nos seguintes termos: “Ao Dr. José
Neves Júnior meu primeiro professor de História, pelo muito que lhe devo e pelo
muito que o estimo.”
Também o seu
aluno Orlando Ribeiro não esquece o seu professor do Liceu e, já em 1966,
convida-o a fazer a palestra de abertura de um dos seus Colóquios que se
realizavam todas as quintas-feiras no Centro de Estudos Geográficos. José Neves
acede preparando um trabalho que intitulou – “Introdução ao estudo da formação lagunar do sul de Portugal”. Este
trabalho seria publicado em 1967 na revista do Liceu Normal de Lisboa – “A
Palestra”.
“A
cerimónia da última lição”
A sua longa
carreira como docente termina em 1971, aos 70 anos de idade, sendo à época
vice-reitor. A despedida foi no dia de Camões: “Em Junho de 1971 houve no Liceu um jantar de despedida em que falei,
recordando alguns aspectos da minha actividade de professor. Pelo 10 de Junho,
o reitor Joaquim Magalhães pediu-me para, na usual sessão, falar sobre Camões. Sem
que eu desse por isso era afinal a cerimónia da última lição.”
Em Outubro de
1971, a revista Labor faz referência à sua aposentação: “O Dr. José Neves Júnior, logrou uma justa fama de homem muito culto,
não só pelo nível de ensino que transmitiu aos seus alunos, como pelas excelentes
conferências que profere no Círculo Cultural do Algarve e noutras
colectividades sobre variados ramos do conhecimento.”
Em Junho de 1972
recebe um louvor do Ministério da Educação Nacional, noticiado pelo jornal
Correio do Sul: “O nosso estimado conterrâneo,
ilustre colaborador e prezado amigo, sr. Dr. José de Jesus Neves Júnior,
Licenciado em Ciências Históricas e Geográficas e professor efectivo, muito
considerado e distinto, de Ensino Liceal, que, conforme noticiamos, passou à
meses à situação de reforma, por ter atingido o limite de idade, recebeu agora
um expressivo louvor do Ministério de Educação Nacional ‘pela competência, zelo
e qualidades demonstradas, durante quarenta e dois anos, nos exercício das suas
funções’.”
A docência
foi, de facto, o que mais marcou a vida de José Neves. Empenhou-se sempre nesta
tarefa de pedagogo preocupando-se em preparar bem todas as suas lições: “ Nas minhas lições houve sempre progresso.
Embora para essa preparação já me bastasse pouco tempo, até ao último dia da
minha docência, sempre pensei previamente no plano das lições, relendo e
melhorando sumários organizados desde há muito”.
Após a sua
aposentação, José Neves continua a sua actividade cívica e cultural: publica
vários artigos em diversos jornais da região, como o “Correio do Sul”, e “O
Algarve”, integra a direcção da Associação de Pais e Amigos das Crianças
Diminuídas e, a partir de 1974, participa no grupo cultural de apoio à Comissão
Regional de Turismo do Algarve.
O 25 de
Abril
O 25 de Abril
de 1974 é um novo marco na vida nacional que leva José Neves à intervenção:
“Na manhã de esse dia, estando eu lendo e
meditando um texto das minhas “Obras Completas de Henri Bergson” – a minha
filha entrou-me no escritório dando-me a notícia de que Lisboa estava cercada
por tropas hostis ao governo de Marcelo Caetano, o sucessor de Oliveira
Salazar, e pessoa que eu bem conhecia por ter sido meu colega nas aulas do
Prof. Reis Santos na Faculdade de Letras.
Passei a ouvir as contínuas emissões de
rádio e assim fui chegando à conclusão de que o longo período histórico que
começara em 1926 estava terminado.
Creio, se bem me lembro, que foi no dia
seguinte que se realizou no Círculo Cultural uma grande reunião de opositores
ao regime anterior. Como era uma das pessoas mais antigas e dado o meu passado
político, fui indicado para presidir à sessão, em que várias pessoas tomaram a
palavra. No dia seguinte – ou fora neste próprio dia – com o Eng. Morgado André
e outros, dirigi-me ao quartel para informar o Movimento das Forças Armadas que
os agentes da Pide continuavam no seu quartel e a olhar ostensivamente para os
opositores. O oficial comandante dirigiu-se imediatamente ao quartel da Pide.
Poucos dias depois, em 1 de Maio,
realizou-se a grande manifestação de regozijo. Nela tomei parte indo, à frente,
com o Dr. Emílio Campos Coroa e outros. Dirigimo-nos à Câmara. Grande multidão
se acumulava no largo. Várias pessoas falaram a essa multidão. Pediram-me
também para dizer algumas palavras. Assim fiz, referindo que para caminharmos
para o socialismo era necessário não repetirmos os desmandos do princípio da 1ª
República. Que havia que corrigir salários miseráveis existentes, mas que de
princípio era indispensável “arrumar a casa” e aguardar inteligentemente. Há
uma fotografia, que tenho arquivada, de essa minha intervenção. Uma euforia
empolgante dominava todos.
Pelos meados de Maio, ou já quase no fim do
mês, realizou-se um Comício no Cinema Santo António. Nele colaboraram, além de
outros, o Tengarrinha, o Prof. Orlando de Carvalho, de Coimbra. Falei nesse
comício e tenho arquivado o texto da intervenção. A sala estava completamente
cheia. Fui convidado para sessões de esclarecimento em vários lugares em Faro e
fora. Falei por duas vezes aos professores do Liceu na sala da biblioteca, fiz
três palestras às freiras na Casa de Santa Zita, pois desejavam saber em que
consistia o pensamento socialista; falei ainda em Salir, em sessão pública
realizada no recinto situado atrás da Igreja. Tenho presente a beleza suave de
essa tarde de fim de Maio ou princípios de Junho. A minha antiga aluna e amiga,
Margarida Farrajota, veio pedir-me para fazer uma palestra de esclarecimento em
Loulé, num club da vila. Lá fui e a sessão parece que agradou bastante à
numerosa assistência.
Chegavam ao meu conhecimento notícias de
desmandos praticados aqui e ali. Em Loulé, Santa Bárbara de Nexe e outras
povoações havia quem, pela calada da noite, escrevesse, a tinta de óleo,
ameaças denunciadoras nas paredes das casas das pessoas ligadas ao antigo
regime. Escrevi um texto, que assinei e mandei distribuir, em Loulé, Santa
Bárbara etc. Nele se dizia que se deixassem essas pessoas em paz desde que não
tomassem atitudes de intervenção contrária ao processo político em curso. Penso
que muitas pessoas ficaram, assim, sossegadas.
No meu espírito dominava o receio de que a
prática de desmandos poderia impedir, por criar ambiente de revolta nas
consciências, a marcha normal da revolução política e mesmo social.”
Últimos
anos
No final dos
anos 70 a saúde torna-se-lhe frágil. No entanto prossegue. Em 1980 orienta uma
série de “Visitas Guiadas” ao património cultural de Faro, promovidas pelo
Círculo Cultural do Algarve. Colabora nos cursos de formação de Guias de
Turismo na Escola Hoteleira de Faro até 1981. Escreve ainda os seus artigos
para os jornais regionais. E mantém a actividade epistolar, a longa, tão longa
actividade epistolar, que foi mudando de interlocutores ao longo das décadas,
mantendo-se outros, alguns, sempre. E o gosto pela música. Mozart, Liszt,
Beethoven, Chopin. Outros também. Clássicos na sua grande maioria. Mantém
também a forte ligação à Natureza que o faz olhar com esperança para uma
pequena árvore nascente ou quedar-se na observação de uma bela paisagem.
E prossegue
as suas leituras, o interesse pelo mundo, o interesse pelos seres humanos do
mundo. E os números do Courrier da Unesco vão-se acumulando pelas estantes, os
recortes de jornais. As memórias.
Prossegue as
suas leituras. Prossegue sempre as suas leituras.
Até ao fim.
Vinte e sete
de Outubro de 1982.
Cristina Neves
Um homem fascinante! Uma vida tão cheia de Vida merecia ser contada assim. Prosseguida assim.
ResponderEliminarInês Figueiredo
Obrigado! :)
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