a) Extensão
geográfica da urbe.
A
fisionomia geográfica da urbe farense no primeiro quartel do nosso século era
acentuadamente diferente do que é hoje. Já nos fins do século XIX , o facto da
povoação ter sido ligada com o Alentejo, pela administração fontista, pelas
estradas macadamizadas e, depois, com o Centro e Norte do país pela via férrea
imprimiu-lhe uma fisionomia nova, pois foram importantes as obras de
urbanização então realizadas: a norte e em torno do povoado construiu-se uma
via circular de ligação entre as rodovias nacionais de leste e de oeste e os
caminhos municipais de S. Luís e da Srª da Saúde – a chamada estrada da
Circunvalação, além de que, na fachada oeste, houve importantes aterros para o
assentamento da linha férrea e ainda a construção do edifício da estação
ferroviária e vários anexos ligados ao novo meio de transporte. A ferrovia foi
lançada à beira e, mesmo em parte, através da laguna, pelo que houve a
necessidade da construção de uma pequena ponte e de um muro de
protecção da via, de que resultou a formação de uma doca.
Em torno da
velha muralha muçulmana, que envolvia a “vila antiga”, e a linha férrea ficou
uma estreita faixa transitável, deixando, assim, a Ponte- Nova de ser atingida
pelas águas lagunares.
Ao alvorecer
o século actual, o velho burgo estava portanto enquadrado pela estrada da
Circunvalação e pelo complexo ferroviário. Mas o aglomerado urbano, embora
ampliado, não atingia em toda a sua extensão os limites indicados. No campo da
Trindade fora instalado o parque da Alameda e, entre o muro leste deste e o
prolongamento da Circunvalação para o sítio do Bom-João, havia um espaço aberto
onde, ainda em 1925, havia algumas amendoeiras; em frente da ermida de S. Luís
havia um vasto campo que a Circunvalação dividia em dois sectores, um dos quais
se estendia entre a Circular referida, e parte da actual rua
Teixeira Guedes. Por este último espaço aberto espraiava-se a linha de água
que, vindo de diante da ermida de S. Luís e correndo a Leste da Circunvalação
por um pequeno vale encaixado, se metia por sob um pontão subjacente a esta via
até entrar no sistema de canalizações subterrâneas da cidade, perto
da fachada oeste do actual palácio da Justiça. Entre este último espaço aberto
situado aquém da Circunvalação e a parte nascente da horta do Colégio
situava-se a rua Extrema (actual João de Deus, ela extremava, de facto, a urbe
a leste).
Mais adiante,
para o lado Norte e NW, estendia-se um outro espaço aberto atrás da bela Igreja
do Carmo. Aqui, a norte do traço da Circunvalação, ficavam os sítios do
“Montinho” e alto de Rodes onde apenas havia uma fila de pequenas casas de
rés-de-chão ainda hoje existentes e que se erguiam num campo de
arenito quaternário, visivelmente trabalhado pela erosão, a que vulgarmente se
chamava as “barrocas”. Um pouco mais para poente e no meio do “cercado” Aboim
Ascensão situava-se a “casa do cercado” ainda existente, assim como mais dois
edifícios, até se chegar à estrada de Loulé.
A
Circunvalação entroncava, mais ou menos a NW, com a estrada de Loulé e, na zona
ferroviária, atrás do palacete Mateus da Silveira, havia um espaço sem casas
onde, a partir aproximadamente do ano 8 ou 9, foi surgindo o “bairro da
estação”. Ao fundo e a W de esse espaço levantava-se o edifício da fábrica de
moagem.
b) Estrutura
da Urbe
Numa época em
que o êxodo dos campos para a urbe ainda não se esboçara, o velho povoado ainda
apresentava certa fisionomia rural, pois no tecido urbano havia várias hortas:
a de S. Francisco, anexa à igreja da mesma invocação, com o pequeno cemitério
que desapareceu ao fazer-se o traçado da R. de Infantaria 4; a da Mouraria,
onde em 1914-15 se construiu o Teatro Santo António; a do Colégio, anexa ao
grande edifício que fora casa da Companhia de Jesus, edifício que,
posteriormente, em pleno século XIX, fora transformado no Teatro Lethes; a
horta do Carmo, a W do templo deste nome e, no coração da urbe a “horta do Ramalho”,
anexo à rua do Zambujeiro, hoje no Compromisso, sobre a qual se debruçava uma
formosa mélia integrada na horta; e ainda, junto do convento da Srª da
Assunção, já então transformado em fábrica de cortiça, uma pequena horta que
tivera o seu prolongamento ao longo da muralha mourisca.
Na pequena
povoação-cidade, além do núcleo genético envolvido pelas muralhas e que
conserva ainda a estrutura típica das povoações muçulmanas com as
ruas circulares e seus pátios – distinguiam-se, como actualmente ainda, os grupos
de arruamentos que se foram formando quando a partir do princípio do século XVI
, a povoação foi transbordando para fora da antiga cerca: o grupo constituído
pelas casas de habitação e armazéns que se foram alinhando a oeste do nível
tirreneano de S. Pedro, com a orientação norte-sul, e de que fazia parte a rua
Direita (rua “Directa”) hoje de Conselheiro Bívar, rua que tinha a sua
continuação pela “Carreira”, para norte, e que conduzia à via para Loulé; os
arruamentos relacionados com a rua do Rego (D.
Francisco Gomes a que se segue a de Santo António); as que rodeavam a Alagoa;
as que rodeavam o edifício da Sociedade dos Artistas; as que tinham surgido em
torno da Igreja de S. Pedro, nas imediações da velha igreja de S. Sebastião e
depois do Convento dos Capuchos.
Dominavam nos
primeiros decénios do nosso século as moradias de rés-do-chão apenas, e os
pavimentos das ruas eram frequentemente de terra-batida, mesmo os grandes
largos, tais como os do Carmo, Poço de S. Pedro, Alagoa, praça D. Francisco
Gomes, o terreiro da Sé e a praça D. Afonso III. Havia muitas ruas que não eram
dotadas de canalizações subterrâneas para as águas pluviais e para o s dejectos
domésticos, pelo que havia um anti-higiénico serviço municipal de recolha de
tais dejectos constituído por grandes pipas que, puxadas por bois, percorriam a
cidade. É que os rendimentos do município não permitiam a realização de obras
dispendiosas. Em 1928 e 1929 ainda por algumas ruas se fazia a circulação das
referidas pipas nauseabundas.
No fim do
século XIX, na fachada oeste e SW do burgo plantou-se o jardim Manuel Bivar que
foi dotado com um lago que ainda me lembro de ver, mas seco, pois não se
enfrentara o problema do respectivo abastecimento de água. O esboço de uma avenida
traçada na direcção da estação ferroviária, alongava-se paralelamente à doca e ao
estaleiro naval situado na extremidade NW deste. Ao longo da avenida, duas
filas de palmeiras, que a falta de civismo, nesse tempo, como agora, não
consentiu que se fizessem adultas – punham uma nota campestre no aspecto
ribeirinho do sítio. Junto da doca , em frente da Alfândega, existia um sistema
de bombas de água potável ao lado das quais se erguia um barracão – o “Repeso
do Carvão” – onde estavam instalados serviços fiscais da Câmara. Foi no Verão
de 1910, e integrada em grandes festejos que se faziam na cidade, que teve
lugar a inauguração do obelisco a Ferreira de Almeida, obra desenhada por um
professor da Escola de Desenho, de nacionalidade austríaca – a figura, muito
conhecida na cidade, do Sr. Haussman.
Embora
dominassem como atrás disse, as moradias de rés-do-chão, na parte baixa da
cidade, na Vila-a-Dentro, e na zona de S. Pedro havia muitas habitações de 1º
andar que eram, em geral, pertença de proprietários rurais que se haviam
instalado no burgo. Eram edifícios com uma estrutura típica característica de
tais moradores: um andar nobre residencial (raramente dois andares), um
rés-do-chão para recolha de produtos do campo e um grande quintal para
resguardo de carros com compartimentos anexos para os animais. Assim eram, por
exemplo, as casas do cônsul Crispim na Rua de S. Pedro, o Palácio Bívar, a casa
manuelina da esquina da Rua do Compromisso com a travessa do Capitão-Mor, etc.
Mas nesses
primeiros anos do século, na Rua da Cadeia (que liga o largo de S. Pedro com o
antigo largo, hoje de Ferreira de Almeida, onde se situava a cadeia), na Rua
Direita, e até na Rua de Santo António, havia ainda, moradias térreas. Em pleno
centro urbano, nos primeiros anos do século ainda se podiam observar vestígios
do grande sismo do meio do século XVIII – tais eram as ruínas que rodeavam o “quintalão
às escuras” situado no ângulo em frente da frontaria da casa manuelina da Rua
do Compromisso. Pelo estado de degradação em que as observei, penso que os
edifícios que se alinham na travessa do Capitão-Mor entre a casa manuelina e a
Rua do Prior serão de época pouco posterior ao terramoto ou talvez de antes. Assim
sucederá com outras edificações situadas a norte e contíguas à horta do
Ramalho.
c) Arrabalde da urbe
Para além da
Circunvalação, o arrabalde da povoação estendia-se até a uma distância difícil de
precisar mas que não ia além de dois quilómetros. Seguindo de leste para oeste,
essa zona começava na Atalaia e Rio-Seco
e desdobrava-se até à linha férrea. No entroncamento da estrada de S. Luís com
a de Olhão, junto da ribeira das Lavadeiras erguia-se uma barraca onde
funcionários do fisco municipal anotavam as entradas de mercadorias sujeitas a
imposto, como, por exemplo, o vinho. Seguia-se a ermida de S. Luís, com o
Espaldão, mancha de solo estéril arenítico, onde se situava o cemitério, a
ermida de Santo Amaro, a carreira militar de tiro e uma casa, ainda existente,
que servia de paiol de pólvora e que se ergue num terreno que se designava Alto
da Forca; a oeste da referida fila de
casas de rés-do-chão, ainda existente, estendia-se o “cercado” Aboim Ascensão com
a sua moradia solarenga e, a seguir, uma outra no início da estrada da Srª da
Saúde. Depois de se
encontrar mais uma casa de quinta, que ainda não foi destruída, começava a
estrada de Loulé, no início da qual havia mais uma barraca do fisco municipal.
Para quem saía da povoação. À esquerda desta estrada havia o “cercado” Ventura
Coelho, a que se seguia uma oficina de carros, uma fábrica de preparação de
cortiça em prancha com uma portada de linhas barrocas e que teria constituído a
entrada de uma quinta aí existente; seguia-se a casa de 1º andar onde hoje está
instalado um consulado, uma oficina de ferreiro e, seguidamente, um amplo
edifício habitado por famílias de poucos recursos económicos; em frente, e
separando da estrada algumas hortas, já existiam algumas casas, incluindo uma
velha capela anexa a uma moradia de linhas nobres ainda existente. É nesta
sessão que fica a casa das “figuras”.
Em Marchil
havia casas e, de um e outro lado da estrada. O terreno de sapal alto, com as
suas “abertas” e a sua vegetação holófita, só pelos fins do primeiro quartel do
século começou a ser agricultado; era através de esse sapal que corria a
ribeira de Marchil cujo assoreamento posterior é notório. Sob a acção humana
principalmente, foi-se verificando a modificação pedológica da referida zona de
sapal. Trata-se, afinal, de um facto que foi ocorrendo, através dos séculos, em
extensas zonas de formação lagunar e onde actualmente se pratica uma
agricultura intensiva.
A oeste da
linha e já dentro da zona lagunar distribuíam-se vários moinhos de maré ligados
à terra por um pequeno troço de caminho.
Os edifícios
de essas pequenas fábricas hidráulicas, com as suas respectivas “caldeiras”,
ainda existem, embora aplicados a outros fins. Desapareceu, porém, o pitoresco
edifício do moinho da Atalaia, junto da chamada Praia dos Estudantes, assim
chamada depois de 1908, data em que o Liceu foi instalado em edifício
construído junta da Alameda João de Deus.
José Neves
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