domingo, 23 de junho de 2013

Faro - Recordações de um passado longínquo (1981) - Extensão geográfica da urbe; Estrutura da urbe



Recordações de um passado longínquo, in Página Cultural do Círculo Cultural do Algarve, Nov de 1981


a)    Extensão  geográfica da urbe.

 A fisionomia geográfica da urbe farense no primeiro quartel do nosso século era acentuadamente diferente do que é hoje. Já nos fins do século XIX , o facto da povoação ter sido ligada com o Alentejo, pela administração fontista, pelas estradas macadamizadas e, depois, com o Centro e Norte do país pela via férrea imprimiu-lhe uma fisionomia nova, pois foram importantes as obras de urbanização então realizadas: a norte e em torno do povoado construiu-se uma via circular de ligação entre as rodovias nacionais de leste e de oeste e os caminhos municipais de S. Luís e da Srª da Saúde – a chamada estrada da Circunvalação, além de que, na fachada oeste, houve importantes aterros para o assentamento da linha férrea e ainda a construção do edifício da estação ferroviária e vários anexos ligados ao novo meio de transporte. A ferrovia foi lançada à beira e, mesmo em parte, através da laguna, pelo que houve a necessidade da construção de uma pequena ponte e de um muro  de protecção da via, de que resultou a formação de uma doca.
Em torno da velha muralha muçulmana, que envolvia a “vila antiga”, e a linha férrea ficou uma estreita faixa transitável, deixando, assim, a Ponte- Nova de ser atingida pelas águas lagunares.
Ao alvorecer o século actual, o velho burgo estava portanto enquadrado pela estrada da Circunvalação e pelo complexo ferroviário. Mas o aglomerado urbano, embora ampliado, não atingia em toda a sua extensão os limites indicados. No campo da Trindade fora instalado o parque da Alameda e, entre o muro leste deste e o prolongamento da Circunvalação para o sítio do Bom-João, havia um espaço aberto onde, ainda em 1925, havia algumas amendoeiras; em frente da ermida de S. Luís havia um vasto campo que a Circunvalação dividia em dois sectores, um dos quais se estendia entre a Circular referida, e  parte da actual rua Teixeira Guedes. Por este último espaço aberto espraiava-se a linha de água que, vindo de diante da ermida de S. Luís e correndo a Leste da Circunvalação por um pequeno vale encaixado, se metia por sob um pontão subjacente a esta via até entrar no sistema de canalizações subterrâneas  da cidade, perto da fachada oeste do actual palácio da Justiça. Entre este último espaço aberto situado aquém da Circunvalação e a parte nascente da horta do Colégio situava-se a rua Extrema (actual João de Deus, ela extremava, de facto, a urbe a leste).
Mais adiante, para o lado Norte e NW, estendia-se um outro espaço aberto atrás da bela Igreja do Carmo. Aqui, a norte do traço da Circunvalação, ficavam os sítios do “Montinho” e alto de Rodes onde apenas havia uma fila de pequenas casas de rés-de-chão ainda hoje existentes  e que se erguiam num campo de arenito quaternário, visivelmente trabalhado pela erosão, a que vulgarmente se chamava as “barrocas”. Um pouco mais para poente e no meio do “cercado” Aboim Ascensão situava-se a “casa do cercado” ainda existente, assim como mais dois edifícios, até se chegar à estrada de Loulé.
A Circunvalação entroncava, mais ou menos a NW, com a estrada de Loulé e, na zona ferroviária, atrás do palacete Mateus da Silveira, havia um espaço sem casas onde, a partir aproximadamente do ano 8 ou 9, foi surgindo o “bairro da estação”. Ao fundo e a W de esse espaço levantava-se o edifício da fábrica de moagem.
               
b)     Estrutura da Urbe

Numa época em que o êxodo dos campos para a urbe ainda não se esboçara, o velho povoado ainda apresentava certa fisionomia rural, pois no tecido urbano havia várias hortas: a de S. Francisco, anexa à igreja da mesma invocação, com o pequeno cemitério que desapareceu ao fazer-se o traçado da R. de Infantaria 4; a da Mouraria, onde em 1914-15 se construiu o Teatro Santo António; a do Colégio, anexa ao grande edifício que fora casa da Companhia de Jesus, edifício que, posteriormente, em pleno século XIX, fora transformado no Teatro Lethes; a horta do Carmo, a W do templo deste nome e, no coração da urbe a “horta do Ramalho”, anexo à rua do Zambujeiro, hoje no Compromisso, sobre a qual se debruçava uma formosa mélia integrada na horta; e ainda, junto do convento da Srª da Assunção, já então transformado em fábrica de cortiça, uma pequena horta que tivera o seu prolongamento ao longo da muralha mourisca.
Na pequena povoação-cidade, além do núcleo genético envolvido pelas muralhas e que conserva ainda a estrutura típica  das povoações muçulmanas com as ruas circulares e seus pátios – distinguiam-se, como actualmente ainda, os grupos de arruamentos que se foram formando quando a partir do princípio do século XVI , a povoação foi transbordando para fora da antiga cerca: o grupo constituído pelas casas de habitação e armazéns que se foram alinhando a oeste do nível tirreneano de S. Pedro, com a orientação norte-sul, e de que fazia parte a rua Direita (rua “Directa”) hoje de Conselheiro Bívar, rua que tinha a sua continuação pela “Carreira”, para norte, e que conduzia à via para Loulé; os arruamentos relacionados com a rua do Rego (D. Francisco Gomes a que se segue a de Santo António); as que rodeavam a Alagoa; as que rodeavam o edifício da Sociedade dos Artistas; as que tinham surgido em torno da Igreja de S. Pedro, nas imediações da velha igreja de S. Sebastião e depois do Convento dos Capuchos.
Dominavam nos primeiros decénios do nosso século as moradias de rés-do-chão apenas, e os pavimentos das ruas eram frequentemente de terra-batida, mesmo os grandes largos, tais como os do Carmo, Poço de S. Pedro, Alagoa, praça D. Francisco Gomes, o terreiro da Sé e a praça D. Afonso III. Havia muitas ruas que não eram dotadas de canalizações subterrâneas para as águas pluviais e para o s dejectos domésticos, pelo que havia um anti-higiénico serviço municipal de recolha de tais dejectos constituído por grandes pipas que, puxadas por bois, percorriam a cidade. É que os rendimentos do município não permitiam a realização de obras dispendiosas. Em 1928 e 1929 ainda por algumas ruas se fazia a circulação das referidas pipas nauseabundas.
No fim do século XIX, na fachada oeste e SW do burgo plantou-se o jardim Manuel Bivar que foi dotado com um lago que ainda me lembro de ver, mas seco, pois não se enfrentara o problema do respectivo abastecimento de água. O esboço de uma avenida traçada na direcção da estação ferroviária, alongava-se paralelamente à doca e ao estaleiro naval situado na extremidade NW deste. Ao longo da avenida, duas filas de palmeiras, que a falta de civismo, nesse tempo, como agora, não consentiu que se fizessem adultas – punham uma nota campestre no aspecto ribeirinho do sítio. Junto da doca , em frente da Alfândega, existia um sistema de bombas de água potável ao lado das quais se erguia um barracão – o “Repeso do Carvão” – onde estavam instalados serviços fiscais da Câmara. Foi no Verão de 1910, e integrada em grandes festejos que se faziam na cidade, que teve lugar a inauguração do obelisco a Ferreira de Almeida, obra desenhada por um professor da Escola de Desenho, de nacionalidade austríaca – a figura, muito conhecida na cidade, do Sr. Haussman.
Embora dominassem como atrás disse, as moradias de rés-do-chão, na parte baixa da cidade, na Vila-a-Dentro, e na zona de S. Pedro havia muitas habitações de 1º andar que eram, em geral, pertença de proprietários rurais que se haviam instalado no burgo. Eram edifícios com uma estrutura típica característica de tais moradores: um andar nobre residencial (raramente dois andares), um rés-do-chão para recolha de produtos do campo e um grande quintal para resguardo de carros com compartimentos anexos para os animais. Assim eram, por exemplo, as casas do cônsul Crispim na Rua de S. Pedro, o Palácio Bívar, a casa manuelina da esquina da Rua do Compromisso com a travessa do Capitão-Mor, etc.
Mas nesses primeiros anos do século, na Rua da Cadeia (que liga o largo de S. Pedro com o antigo largo, hoje de Ferreira de Almeida, onde se situava a cadeia), na Rua Direita, e até na Rua de Santo António, havia ainda, moradias térreas. Em pleno centro urbano, nos primeiros anos do século ainda se podiam observar vestígios do grande sismo do meio do século XVIII – tais eram as ruínas que rodeavam o “quintalão às escuras” situado no ângulo em frente da frontaria da casa manuelina da Rua do Compromisso. Pelo estado de degradação em que as observei, penso que os edifícios que se alinham na travessa do Capitão-Mor entre a casa manuelina e a Rua do Prior serão de época pouco posterior ao terramoto ou talvez de antes. Assim sucederá com outras edificações situadas a norte e contíguas à horta do Ramalho.

c) Arrabalde da urbe


Para além da Circunvalação, o arrabalde da povoação estendia-se até a uma distância difícil de precisar mas que não ia além de dois quilómetros. Seguindo de leste para oeste, essa zona começava  na Atalaia e Rio-Seco e desdobrava-se até à linha férrea. No entroncamento da estrada de S. Luís com a de Olhão, junto da ribeira das Lavadeiras erguia-se uma barraca onde funcionários do fisco municipal anotavam as entradas de mercadorias sujeitas a imposto, como, por exemplo, o vinho. Seguia-se a ermida de S. Luís, com o Espaldão, mancha de solo estéril arenítico, onde se situava o cemitério, a ermida de Santo Amaro, a carreira militar de tiro e uma casa, ainda existente, que servia de paiol de pólvora e que se ergue num terreno que se designava Alto da Forca;  a oeste da referida fila de casas de rés-do-chão, ainda existente, estendia-se o “cercado” Aboim Ascensão com a sua moradia solarenga e, a seguir, uma outra no início da estrada da Srª da Saúde. Depois de se encontrar mais uma casa de quinta, que ainda não foi destruída, começava a estrada de Loulé, no início da qual havia mais uma barraca do fisco municipal. Para quem saía da povoação. À esquerda desta estrada havia o “cercado” Ventura Coelho, a que se seguia uma oficina de carros, uma fábrica de preparação de cortiça em prancha com uma portada de linhas barrocas e que teria constituído a entrada de uma quinta aí existente; seguia-se a casa de 1º andar onde hoje está instalado um consulado, uma oficina de ferreiro e, seguidamente, um amplo edifício habitado por famílias de poucos recursos económicos; em frente, e separando da estrada algumas hortas, já existiam algumas casas, incluindo uma velha capela anexa a uma moradia de linhas nobres ainda existente. É nesta sessão que fica a casa das “figuras”.
Em Marchil havia casas e, de um e outro lado da estrada. O terreno de sapal alto, com as suas “abertas” e a sua vegetação holófita, só pelos fins do primeiro quartel do século começou a ser agricultado; era através de esse sapal que corria a ribeira de Marchil cujo assoreamento posterior é notório. Sob a acção humana principalmente, foi-se verificando a modificação pedológica da referida zona de sapal. Trata-se, afinal, de um facto que foi ocorrendo, através dos séculos, em extensas zonas de formação lagunar e onde actualmente se pratica uma agricultura intensiva.
A oeste da linha e já dentro da zona lagunar distribuíam-se vários moinhos de maré ligados à terra por um pequeno troço de caminho.
Os edifícios de essas pequenas fábricas hidráulicas, com as suas respectivas “caldeiras”, ainda existem, embora aplicados a outros fins. Desapareceu, porém, o pitoresco edifício do moinho da Atalaia, junto da chamada Praia dos Estudantes, assim chamada depois de 1908, data em que o Liceu foi instalado em edifício construído junta da Alameda João de Deus.

                                                                                                                           
 José Neves                                                            

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